VILLA RAR

project commissioned by Grupo RAR






O decorador furtivo

 

Aceitando as premissas da historiografia da arte convencional, a modernidade ter-se-ia aberto em meados do século XIX com a pintura de Manet a uma mudança de paradigma que conduziria a uma crescente autonomização da disciplina e dos seus meios, que por sua vez iria desembocar nas mais diversas tipologias abstratas do século XX.

Claro que esta linearidade histórica é uma das inúmeras intra-histórias que se poderiam desenhar no interior do processo de consolidação da pintura moderna, com exceções cintilantes (a contenda anti retiniana de Duchamp), desalinhadas (o universo dada e surrealista), a contraciclo (o classicismo figurativo da segunda e terceira década do século passado), e as múltiplas redescobertas de um mundo da arte hoje mais atento às margens geográficas e sociais (o Harlem Renaissance, da década de vinte protagonizado por autores negros até hoje bastante negligenciados ou a pintura antropofágica de Tarsila de Amaral no Brasil, por exemplo) …e a lista poderia estender-se até à exaustão científica e universitária.

Com a desmaterialização do objeto artístico na década de sessenta do século passado, muitos foram os que agoiraram uma prematura morte da pintura. No entanto, para os pintores atuais, a sua constante reinvenção, quer a nível formal, como no plano concetual, representa hoje em dia não só uma pesada herança, quanto a liberdade do “anything goes” os responsabiliza severamente.

André Sousa é um flâneur pós-histórico. Fazendo uma analogia um pouco abusiva, é como se tratasse, ao nível da criatividade contemporânea, da invenção do artista-drone. A sua perspetiva é não só a de um caminhante por passeios, avenidas, arcadas, praças, parques e museus, mas a de um ente que sobrevoa no espaço e no tempo geografias e épocas que o seduzem. Nesse percurso tem vindo a alimentar os seus projetos de referências tanto eruditas como da baixa-cultura, da cultura de rua, da vivência desorganizada do contracampo cultural, da efervescência do bairro ou da comunidade.

Quando pela primeira vez me revelou o que estava a pensar para responder ao convite do projeto “Um olhar sobre a Rar”, disse-me que vagueava mentalmente entre os frescos de Pompeia e os murais de Diego Rivera no Detroit Institute of Arts (executados entre 1932-33). A vida amorosa, o retrato social e a mitologia dos primeiros arqueando até à glorificação do trabalho dos segundos.

Nos últimos anos este artista tem vindo a apresentar, entre outros meios utilizados, grandes superfícies de tecido pintado que se desdobram nos espaços expositivos em diferentes instalações (como é a circunstância da peça Parábola de 2014, atualmente na coleção do Museu de Serralves). No caso das obras agora apresentadas, André Sousa propõe uma ocupação das molduras decorativas da casa-sede da Holding. Os tecidos acompanham as formas pré-existentes, como se de uma encomenda extremamente precisa se tratasse. Apontamentos de paisagens, formas geométricas em maquinais sobreposições e aglomerações, quase-abstrações de relevo arquitetónico compõem um universo de imagens fluidas, análogas às pinturas orientais, onde mais do que o resultado final interessa o processo e o modo como a mente se desdobra nessa construção e apreensão.

André Sousa e a pintura zen pós-digital. André Sousa, o decorador furtivo.

Miguel von Hafe Pérez


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